sexta-feira, 7 de março de 2014

DEMISSÃO

o cheiro de tinta era forte e meus olhos ardiam. eu tinha que fazer aquilo, precisava do dinheiro –. 
        meu encarregado era grande. gostava de mostrar isso de todas as formas possíveis, inclusive fisicamente. gostava de mostrar sua inaptidão em fazer esforços físicos e adorava pedir; era quase um andarilho esfomeado cheio de culpa e fraqueza que sabia demonstrar de modo sublime as duas coisas e usava isso da maneira mais ignominiosa possível. gostava de mim, mas como se gosta de um inimigo, com admirável ódio. não me entendia, procurava esquecer de minhas pequenas faltas logo após cometidas – necessidade, é claro – e sempre escolhia outro com quem pudesse descontar sua injúria:
    
      - Tico-Tico, ainda está vivo? não sei, olhem só, o que há com você? parece dormir em cima da refiladora!
       
      meu turno começava às 21h:30 e até às 06h:00 eu estaria por ali ainda. o encarregado muito dificilmente de uns tempos para cá permanecia na empresa até mais tarde. acontecia com mais frequência entre quinta e sexta feira. era muito comum encontrá-lo num desses dias de hora extra com um cachorro quente nas mãos, maionese, muita maionese espalhada pelos cantos da boca, um copázio de refrigerante gelado sobre a mesa e muitas risadas saborosas. Joel era o sujeito que arruava os computadores da empresa. era ruivo e também muito grande. Joel era o maior. pesava talvez 160 quilos e caminhava com dificuldade até o banheiro. na realidade, quando Joel estava ali, eles comiam pizza. o nome do encarregado era Emerson, uma merda de nome que eu não conseguia gostar.
        Emerson.
        já havia mais de dois anos que eu recebia algum dinheiro daquele lugar e não tinha qualquer orgulho disso. todos precisavam trabalhar em empregos pouquíssimo agradáveis, uma condição lamentável da vida em que nos entregamos. no entanto, patroa, patrão, encarregado e alguns dos mais influentes funcionários da gráfica mostravam o orgulho de um modo aterrorizante, como se aquilo realmente tivesse uma importância messiânica em suas vidas. eu sempre quis transar com a dona da empresa. o marido dela era um pobre diabo; uma barriguinha de cerveja, um dente quebrado que muitas vezes o obrigava esconder o sorriso. por isso, Fagner era tido como um homem sério. usava suspensório, sapatos sempre muito lustrados e maiores que seus pés, assinava a Veja e gostava de grampear as partes do jornal, deixando os classificados sempre por primeiro. o nome da patroa era Felícia, tinha cabelos loiros, 50 anos e ainda pernas deleitosas que nos deixava excitados quando estava por perto. era sempre calças de couro preta, sobreposições adequadas com decotes ousados e estratégicos (com pequenas manchas marrons sobre as saliências dos seios) que faziam os homens todos pensar sacanagens no horário de trabalho.
       pia fraus ou paus duros – diria o poeta.
       havia câmeras por todo o lugar, como num reality show macabro da vida real. éramos dois apenas no turno da noite. depois das 22h:00 não havia mais ninguém que nos incomodasse. a única semelhança entre mim e Ruivo – como era chamado – era a convicção de que éramos realmente diferentes um do outro. convivência obrigatória causa muitos conflitos psicológicos dos quais inicialmente cria-se certa distância da realidade e o mundo torna-se apenas uma confusão de sensações insalubres, mas que aos poucos, com o passar dos dias neste mundo, você aprende a relevar – a única opção entre homens conscientes e cheios de dívidas.
        Emerson, quando me chamava a atenção, era sempre receoso, com algum sorriso estranho na face, porque tínhamos um acordo: não fazíamos acordos, não era preciso. cada qual agia de modo a não se intrometer na vida um do outro. ele como encarregado de produção e subgerente, deveria fiscalizar(-me), gritar-(lhes), colocar as coisas em ordem; eu, simples mortal do operariado, tinha o dever de ficar na minha e fazer o que pediam (com certas prerrogativas, é claro). mas – e sempre havia um “mas” –, de uns tempos para cá, a empresa começou a crescer. assim como Joel e Emerson, a empresa estava grande, e como tudo que é grande, caminhava com dificuldade em meio aos que não tiveram a capacidade de escalar a montanha; com isso, cada vez mais, nosso Emerson precisava orientar o pessoal para seguir os passos largos que se propuseram a dar e o maior problema agora estava em conciliar o aumento da produção com a satisfação de nossa dignidade. não que eu fosse preguiçoso, mas tenho demasiado amor pelo meu corpo e mente e sei que a integridade de ambos estava comprometida – e o salário continuava o mesmo! ora, não era um salário ruim; estávamos até bem. mas era um salário que pagavam pelo que fazíamos antes, você sabe, agora aumentou tudo e eu realmente fiquei sem entender qualquer coisa ali.
        eu gostava de ficar sentado, alternando entre olhar a máquina imprimir e cortar os cartazes (era uma grande impressora, como essas HP tradicionais, mas talvez 50 vezes maior, e você tinha que cortar e dobrar as impressões que ela cuspia sem parar) e me dedicar a algum escrito que eu levava num pendrive em PDF e lia, com prazer, até à exaustão, mas sempre muito diligente, fazendo 40 coisas ao mesmo tempo. no entanto, como tudo que é proibido nos interessa de modo tocante, entrar na internet começou a fazer parte de uma espécie de insurreição de minha parte contra o aumento da produção. a regra era clara, os computadores da empresa só poderiam ser utilizados para enviar os cartazes à máquina – INTERNET, nem pensar. eu estava checando e-mails, conversando aqui e ali com alguns amigos, blasfemando, cortejando e contradizendo o mundo através do teclado sujo daquele computador noturno interligado com o universo. o encarregado descobriu e é claro, não gostou. se pudesse, cortaria meu pescoço já pela manhã, percebia-se pelo tom de sua voz desafinada ao telefone. desrespeitei a regra básica de não se intrometer na vida do outro; se alguém estava usando a internet, era ele, Emerson – Encarregado de Produção e Subgerente –, quem deveria rechaçar o indivíduo. me ligou na mesma hora em que presenciara, e já em seguida descobriu haver quase dois meses que tal imprudência estava sendo cometida.
        –  JÁ FOI CONVERSADO SOBRE ISSO, você sabe, disse ele.
        – sim, sei.
        – e o que tem a dizer? VAI CONTINUAR?

        os barulhentos exaustores estavam desligados e era possível ouvir Stravinsky – graças à UEM FM – saindo dos alto-falantes surrados que tínhamos ali.

        – não, não. minhas vistas já estão cansadas Emerson – respondi, irônico. – você sabe como é difícil cuidar para que as vistas não te derrubem, homem.
        – amanhã conversaremos. minha indulgência está me ENOJANDO, sabe? espere aí até às 08h:00, pode ser? NÃO SAIA DAÍ…
        Desligou o telefone.

        terminei o expediente e sem esperar por Emerson me dirigi ao hotel onde Luna estava hospedada. Luna havia morado em Maringá, estudou história na UEM e depois voltou pra São Paulo. nos conhecemos num sarau insano em 2011 e nessa época ela estava para se formar. agora, de férias, visitava os antigos amigos e amantes e eu estava entre um dos amantes. era um belo corpo o dela, talvez propenso a engordar, mas Luna tinha vaidade e fazia o possível pra manter certa disciplina no uso de drogas do emagrecimento. Luna adorava cocaína e álcool. sempre que vinha nos visitar, estava com grandes quantidades. tinha dinheiro, os pais eram ricos; cursou história porque considerou o curso mais fácil e isto bastou para alegrar os velhos progenitores que custearam tudo.
        a porta, como de costume, estava aberta. entrei. Luna estava dormindo no sofá, a cabeça torta, o gato fuçando na gedeira aberta, Pink Floyd tocando timidamente no rádio. a casa estava escura, ainda se conservava limpa – algumas latinhas pelos cantos, mas ainda limpa. me aproximei, fechei a geladeira depois que abri uma cerveja e aumentei um pouco o volume do som. Luna parecia bêbada e decidi não acordá-la. eram quase oito horas e o Grande (Emerson) já estaria chegando por lá, não me encontraria. cada vez mais minha vontade era de não aparecer, deixar o emprego, mostrar quem estava no comando de minha vida. mas eu precisava de cerveja, cigarro, precisa de erva, tinha que me virar com o aluguel, havia luz, água, comida. olhei o gato, ele me olhava. Aproximou-se, deitou na greta do sofá. deitei um pouco também, acariciando sua cabeça. adormeci. Luna acordou às nove, me chamou:
        – BOM DIA Theodoro. que surpresa agradável! – me beijou na testa com hálito de uísque.
        – avisei que apareceria, Luna.
        – vamos, levante-se, temos todo um dia pela frente. vê como está radiante? – abriu a janela, o sol entrou com violência. era possível ver os pelos do gato flutuarem no espaço vazio da sala.
        – que ânimo! disse-lhe eu admirável acordar de ressaca e deleitar-se com o mundo…
        não adiantaria me arrastar com um inseto, não é?
        Luna, quer fugir comigo? que tal o Rio de Janeiro?, sei lá, vamos viver uma vida nômade, tudo por aqui tem me sufocado; não quero outro final de ano neste calabouço. não quero ver garrafas quebradas na Catedral mais uma vez.
        – fugir! tenho feito isso a vida inteira. é hora de nos adequarmos a alguma coisa.
        talvez para ela as coisas fossem diferentes. não existia perrengues em sua vida, imagino. ou será egoísmo meu pensar assim?
         – é engraçado – disse – lembra daquele autor que você me apresentou quando nos conhecemos, Kerouac?
         – claro… amo.
         – pois então, tem uma passagem, do Viajante Solitário, que diz alguma coisa desse tipo : “
nenhum homem deveria passar pela vida sem experimentar pelo menos uma vez a saudável e até aborrecida solidão em um lugar selvagem, dependendo exclusivamente de si mesmo e, com isso, aprendendo a descobrir sua verdadeira força oculta. aprendendo, por exemplo, a comer quando tem fome e a dormir quando tem sono”.
        – ora Theodoro, tu já faz isso, sem dúvida. e faz com perfeição. vem, vamos, eu lhe pagarei um café.
        talvez ela não tenha ouvido.
        vestiu o pulôver cinza e colou seus adornos brilhantes, bijuterias de todos os tipos e tamanhos, coisas que iluminavam maravilhosamente a visão; amarrou os cabelos deixando uma espécie de cookie chinês com uns fios caindo ainda sobre os olhos e bochechas e colocou os óculos antiquados de grau que lhe dava assim um ar de intelectual hippie moderninha. eu ainda cheirava a tinta e tinha olhos avermelhados pela falta de sono. saímos e o dia estava mesmo muito agradável. já havia um tempo que eu não caminhava despreocupadamente pelas calçadas de Maringá durante a manhã (ia direto pra casa depois do trabalho); o simples ar pouco poluído que os arredores do bosque nos proporcionou fez com que me sentisse estranhamente bem. a presença divina de Luna também ajudava. ela comeu seu desjejum numa padaria de esquina, a Brioches, e eu disse que ficaria na cerveja, pois meu intestino não permitia comer durante a manhã e eu precisava – é claro – de um trago. “já é sexta feira também”, pensei.
        - algo tem incomodado você. o que é? – perguntou ela, com olhos interessados em mim.
        - meu trabalho. não tem me agradado.
        - trabalhar é desagradável. sempre foi.
        - não sei que atitude tomar. preciso do emprego.
        - sei como é.
        - sabe?
        - sim, ora. trabalhei muito também.
        - pensei que teus pais fossem ricos.
        - claro, e são. muito. e por isso mesmo tive que me sacrificar. trabalho na empresa do velho desde os 13 anos. no início eu fazia cobranças e isso era terrível. depois me colocaram pra atender o telefone. meus pais insistiram que eu cursasse administração, mas não caí neste engodo maldito. eu não sou meus pais. eu não sou nada e é por isso que vim pra cá e cursei história, distante de todos.
        - isto é novidade para mim.
        - é melhor esquecer.
        - eu… não tenho qualquer perspectiva de futuro naquele lugar. quer dizer, existem algumas fugas, mas estamos falando em trifurcações, qualquer dos caminhos que escolher será sem dúvida incerto. 
        - todos os caminhos são incertos, Theodoro.
        - sim, mesmo os lineares.
        - é melhor a gente voltar e deitar um pouco, você está tenso.
        - por mim tudo bem.
        assim que deixamos a Brioches, meu celular tocou.
        era Emerson.
        - alô…
        - não pedi que me esperasse? – perguntou ele.
        - pediu…
        - e não esperou…
        - é o que parece.
        - é melhor não aparecer mais por aqui.
        - por que diabos eu apareceria?
        - deixe sua carteira de trabalho segunda feira com a Fernanda no escritório.
        - estou amarrando uma fita branca no dedo médio pra não esquecer.
        desligou o telefone.
        Luna quis saber:
        – quem…
        – meu encarregado. fui demitido. 
        – isto significa que…
        – que precisamos de um pouco de amor e alguma bebida forte. precisamos nos esconder um tempinho deste mundo cruel. precisamos ouvir Tchaikovsky no escuro, embaixo de cobertores limpos.
        – Theodoro, não sei se é um bom momento, mas preciso te confessar uma coisa.
        – vá enfrente.
        – acho que sinto alguma coisa forte por você. é como o primeiro trago da manhã no uísque, ou o sol de um meio-dia de verão...
        o sol fora surpreendido por uma nuvem gigantesca e algumas pombas revoaram aos pares quando tais palavras foram pronunciadas. estávamos atravessando a faixa e voltando em direção ao bosque e o apartamento. o ar limpo impregnava meus pulmões uma vez mais. acendi o cigarro. pela primeira vez, sem responder Luna, coloquei meu braço direito em sua cintura. ela sorriu e continuamos a caminhar. nem tudo estava perdido, ainda havia meses a fio de seguro desemprego. a vida e suas vicissitudes, os dias e o seu devir alucinado, os seres humanos e seus empregos de merda. a política, os índios, Deus. quem realmente se preocupava?  “se olhares demasiado tempo dentro de uma tevê, a tevê acabará por olhar dentro de ti”, como diria o poeta. 
        – por que não passa um tempo comigo, até que eu vá embora, volte à Sampa? – perguntou ela, quando chegamos ao prédio.
        – hmmm… por que não? – respondi – posso fazer isso, você me faz bem.
        beijou-me.
        – espero fazer o melhor possível. 

        entramos. o gato ainda dormia na greta do sofá, só com a cabeça pra fora. Luna colocou então o disco. os violinos começaram a gritar. Seria um dia encantador. minhas melhores transas sempre foram com Luna. ela tinha um jeito meigo, mas terrificante de fazer a coisa. nos entranhávamos ali como dois pensamentos que se unem e se rebelam contra os demais. o som que saía de sua boca, o estremecimento de seu corpo, o cheiro natural de sua pele, o pescoço macio, tudo corroborava o meu insano desejo de possuí-la com ardor, até que seus gritos chegassem à Deus, que fosse necessário uma denúncia aos Santos do Silêncio para que nossos espíritos se calassem diante da satisfação. quando terminamos, Luna estava vermelha e o suor escorria de sua testa. era premente a necessidade de tirar Tchaikovsky dali. estávamos exaustos e após uma longa transa, ouvir aquilo nos colocava no centro do apocalipse desorientados com uma cruz cheia de problemas da humanidade nas costas.
        – por que a gente não convida alguns amigos pra beber aqui hoje ? – perguntou ela, levantando-se sem roupas – sabe, nos divertir um pouco.       
        – comemorar minha demissão? – sugeri.
        – por que não? – respondeu – a vida só quer enfiar o dedo no teu rabo mais uma vez e depois cheirar, você sabe.
        – você fala como uma professora, uma pedagoga numa mesa de bar.
        – há, há, há…
       
        assim, teríamos visita hoje.
        nós dois sabíamos que era preciso ligar o quanto antes ao nosso querido Fausto – e isto, estranhamente, fez com que meu nariz coçasse.

        alcancei o telefone na escrivaninha e disquei o número. um inseto voador louco não parava de bater na lâmpada. parecia gostar de fazer aquilo.
        – alô, Fausto?
       fez-se um momento de silêncio do outro lado.
        – depende – respondeu ele.
        – aqui é Mefistófeles.
        – oh, mas é claro. como vai Mefis?
        – muito bem Fausto, obrigado… escuta, preciso reverter esses 100 dinheiros aqui em fogo-fátuos. há cadáveres suficientes no Pântano, meu caro?
        – ora, o sangue está sempre a jorrar garoto, você sabe.
        – é claro.
        – pra quando?
­­        – hoje...  às 18h:00, de acordo? no Pântano? ­
        – está feito, homem…
        –  rachou. obrigado Fausto.
        – “este cercopiteco endoidecia, se pudesse ganhar na loteria”… há, há, há, Mefis safado… estarei lá.
        desligou.
        Luna voltou da cozinha com duas latas de cerveja.
        – ligou já? – quis saber ela.
        – sim…
        ­– quanto?
        – dois galos. quer dizer, eu nunca sei. 50 é um galo, certo? encomendei 100. Ou seja: 2 galos. exagerei?
        – não seja ridículo, está ótimo – sorriu, abrindo a cerveja. –  e tanto faz, chame como quiser, o importante é que a noite hoje vai ser longa, vai ser como essa golada aqui, meu amor.
        Luna deu um grande e experiente gole acabando com a cerveja. amassou a  lata, jogou no canto junto com as outras, arrotou, sorriu e voltou a deitar, virando as costas para mim. o relógio marcava 13h:00 quando apaguei a luz e presenciei o fim da tentativa de suicídio do inseto na lâmpada. terminei a cerveja, mas continuei sentado na cama olhando para a escuridão.

às 17h:00 Luna se levantou e entrou no banheiro pra “tirar a mácula do amor do corpo”. joguei uma água no rosto na pia da cozinha e acendi um cigarro.
        – Luna, vou ao Pântano. – disse-lhe eu, gritando para o box fechado do banheiro.
        – tudo bem – respondeu –, depois ligo pra rapeize. já estamos quase sem cerveja, hein?
        – sim. deve ter ainda três ou quatro… providenciarei alguma na volta.
        – se quiser, tem dinheiro na minha bolsa.
        – obrigado Lu…
        me dirigi à porta sem pegar o dinheiro na bolsa. eu havia recebido dois dias antes, possuía algumas notas ainda. o orgulho é indiferente ao amanhã, e o pântano só estava distante algumas quadras dali. eu caminhava com as mãos nos bolsos enquanto as pessoas pareciam todas preferir a direção oposta da minha. sempre apressadas e sorumbáticas. voltavam do trabalho talvez, com patrões e encarregados desafiadores esperando-as no dia seguinte – com toda a altivez que só quem se acredita no poder pode demonstrar. confesso que não pensava em meu emprego perdido; meus dias sempre foram vividos de modo a não me importar com as questões insignificantes dos pobres e perturbados humanos. despreocupação, evidentemente, significa indiferença e eu, indiferente em meu mundo de mal-estar, me sentia bem. assim, quando cheguei ao Pântano no horário e Fausto ainda não estava lá, apenas sentei e pedi um rabo de galo. o “Pântano” era um bar onde acontecia certas transições. seu dono, LordFálcão, não tinha olhos para certas atividades. assim, depois que entornei o esquenta garganta, pedi outro e uma cerveja.
        – sr. Lordfálcão, Fausto apareceu?
        – ainda não o vi. – parecia pensativo, me olhava do outro lado do balcão com uma das mãos no queixo – não, ainda não… o Fausto de Olinda? não vi…
        pegou a cerveja, abriu, serviu-me o primeiro copo. Fausto entrou apressado.
        – boa tarde – disse ele –, muito boa tarde senhores irmãos. tudo bem Theodoro? como vai Lordfálcão? me vê um esquenta Lord, um conhaque… hoje chove. ou neva. sim, achque neva… mas, homens livres, estão sempre preparados para as intempéries.
        Lordfálcão foi buscar o conhaque. neste ínterim, Fausto depositou a cocaína em minhas mãos. saquei os 100 do bolso e lhe entreguei. ele sorriu, satisfeito, com certo orgulho de mim.
        – é sempre uma honra fazer negócios com você. – disse.
        – digo o mesmo.
        o conhaque chegou e Fausto virou numa golada. fez uma careta forçada, depois sorriu se despedindo com reverência. virou as costas e saiu  em direção ao último momento de sol do dia. permaneci ali, segurando meu copo.
        – a melhor da cidade – disse Lordfálcão.
        – sei. a melhor e a mais rápida.
        peguei  algumas latas de cerveja pra levar e me despedi do amigo Lord. ele tirou o guardanapo das costas segurando-o com a mão direita no ar – como se quisesse dizer que estava ali para nos servir, sempre. deixei o bar e voltei fazendo o mesmo caminho, mas desta vez do outro lado da rua. olhei para o céu e descobri que realmente choveria hoje.

        Luna falava ao telefone deitada no sofá, parte de cima nua, cigarro na mão, gato sobre o peito com os olhos semiabertos, dizia alguma coisa sobre continuar em Maringá por mais algum tempo.
        – quem sabe se não consigo um emprego? …não sei… lecionar é uma chatice. você sabe, adolescentes… sim, parecem. e sabem que são piores. sentem orgulho. escuto coisas terríveis que aconteceram em certas escolas em São Paulo…como diria Ulisses em tal situação: “suporta isso, querido coração! já suportaste muitas outras coisas, mais detestáveis ainda! como um cão!” há, há, há… sim, sim… bem, de qualquer forma, vão olhar pra minha bunda. olha…talvez eu tente outra coisa, vamos ver… tudo bem… quando vocês quiserem, Theodoro chegou agora… estava com Fausto, entende? sim, sim, hoje neva Lis… há, há, há… tchau querida, até breve.
        – você tem seios lindos, preciso dizer. – acariciei-os.
        – e você tem eles todo pra você. – disse ela. e quando se escuta isto, depois de perder o emprego e gastar os últimos trocados, é maravilhoso… você ainda tem um par de seios, ora.
        – quem vem? – perguntei.
        – liguei pra Lis, talvez Juliana apareça também, o Hugo…
          coloquei a cocaína sobre a mesa de centro, ao lado das flores, eram duas bolsas lindas e brilhantes. Luna pegou uma, abriu, depois esticou duas carreiras generosas, ela estava satisfeita. aproximava-se das oito, eu tinha um cheiro pior que o de manhã, precisava de um banho, minha cabeça estava um pouco dolorida, o álcool já estava me derrubando.
        – nossa, realmente boa essa coca, hein?. – elogiou.
        – a melhor que tá rolando, segundo Lordfálcão… bem, acho que agora preciso de um banho. não tenho roupas limpas. empresta um roupão?
        – na primeira gaveta da cômoda, mas antes, aceita outra?
        esticou a carreira, cheirei. meu espírito acordou e agora eu tinha o poder – e quando se tem o poder, sente-se muita sede.  peguei a água, Luna colocou certa sonata de Bach, violinos e pianos comeram nossas cabeças. depois que terminei o banho, me sentindo confiante diante da vida, cheio de alguma coisa superior que invadia cada parte de meu corpo outrora decrepitado, abri a latinha e me sentei no sofá. Luna estava na cozinha, ainda nua da cintura pra cima, aproximou-se de mim acendendo o baseado.
        – nada melhor, hein? disse ela. concordei. um baseado agora nos salvaria a vida.
        antes que chegasse alguém, ainda colocamos algumas carreiras sobre a mesa e bebemos algumas latas. eles chegaram com cerveja, vodca e uísque. Juliana era linda. só a conhecia, até então, de vista, assim pude constatar a realidade de minhas ilusões quando ela entrou, trazendo muito charme, cigarros e seu namorado, Téo. depois chegaram Elis e Hugo.
        – boa noite senhores – disse Hugo, levando à cozinha algumas longs de 350. Elis cumprimentou Luna com um beijo no rosto. eu estava ainda de roupão, outra cerveja na mão, cigarro no canto da boca.
        amigos, conhecer novas pessoas, jogar conversa fora, coisas que eu raramente fazia. sempre  estive muito ocupado em não socializar, manter minha vida distante do interesse público, cívico, queria esconder meu fracassado desinteresse em agradar ou fingir me sentir bem. mas, uma vez que usava algum entorpecente estupeficador – como diria Tim Maia, talvez ­–, era possível passar um tempo por ali, até sorrindo às vezes, amando o desafio de conviver com as contradições. Luna possuía uma grande mesa no centro da sala, com algum adorno, umas flores amarelas num vazo de barro. tirou as flores, sentamos, todos com seus copos, alguém com um baseado aceso, era possível sim. quando olhava Luna, descobria que de alguma forma era possível.
        – Laurentino Gomes esteve esta semana nas livrarias Curitiba lançando seu novo livro – disse Juliana, que estava com o braço direito envolto ao pescoço de Téo.
        – bem, não me interessei muito por suas obras – disse Luna.
        – existem os que não são muito chegados…
        – e existem os que simplesmente não são nada chegados – completou Hugo. ­– por exemplo, eu. prefiro Bóris Fausto.
        –  ha, ha, ha… – riu Téo – você é do tipo que assiste palestras de Felipe Pondé.
        – Márcia Tiburi talvez. gosto dela.
        – Márcia é linda – eu disse.
        Hugo me olhou.
        – ela é anarquista. e gosta de Schopenhauer.
        – na verdade, sobre Felipe Pondé, acho ele bem Nietzschiano – disse Luna. – mas sabe dissimular bem. Márcia é mais realista.
        – não sei o que é ser realista.
        – baseando-se nas coisas dela… compreendendo também o nosso tempo, seria talvez ser ignorante – responde Luna.
        – bem, quem se importa realmente?
        a conversa poderia durar horas. eles se gostavam, notava-se. Luna esticou mais duas carreiras generosas, não ofereceu, alguns ali não usavam e os que sim, tinham.

        quando estávamos já bem altos, o suficiente para notar a presença um do outro e não se preocupar, espontâneos a ponto de deitar no sofá e jogar repetidas vezes o gato para cima, convidei Luna a dar uma volta pela cidade. já era meia noite talvez, havia chovido um pouco, o asfalto estava molhado e o céu tão límpido quanto o Walden de Thoreau no inverno, e estrelas brilhantes nos olhando como se grandes gotas de colírio escorresse por tudo, e embarcações fantasmas singrassem o vazio do espaço, saímos assim – mãos dadas ­–, com algumas confusões de pensamentos, algum receio, uma vontade cada vez menos atraente, a melancolia, a falta de qualquer explicação, mas juntos e talvez não por muito tempo, porque eu estava de partida e não era nada pessoal, Luna não tinha culpa, ninguém tinha culpa, mas não queria me deixar dominar por sentimentos depressivos depois de cheirar cocaína até aquele ponto, e todos sabiam que aquele era o fim, nenhum poder vinha grátis, e tudo era muito momentâneo, é preciso com o tempo adquirir a força necessária para a afirmação, é preciso caminhar junto com a indiferença, mas nunca deixá-la guiá-lo. tudo estava morto, fazia-se um silêncio cortante quando atravessamos a rua – o sinal vermelho, sua forte cor atingindo as luminosidades mais profundas de nossos cérebros, a faixa de pedestres branca, a escuridão e a clareza, o contraste, os cachorros soturnos, algum carro rodando e rodando com alguma sobra de pizza no banco de trás...
        – foi agradável passar o dia com você, Lu. Eu precisava deste conforto.
        – você sempre será bem-vindo.
        – vou pra casa agora, só queria sentir um pouco o mundo.
        – como…e a história de passar uns tempos comigo?
        – preciso de um tempo só, Luna. amanhã talvez nos falamos, eu te ligo.
       – compreendo – disse ela.  Uma escritura antiga também diz: ''a sabedoria só pode ser obtida sob o ponto  de vista da solidão".
        – tenha uma boa noite, portanto. te devolvo o robe de chambre amanhã, sim?
        – ha, ha, ha, seu louco.

        sorrimos confortáveis na presença um do outro e foi o mais intenso sorriso do dia. voltamos até o apartamento e ela entrou. peguei um moto-taxi até o Estância Gaúcha e continuei caminhando em direção à minha casa. passei por alguns bares às moscas, tocavam uma música leve, algum Toquinho talvez. depois, atravessando a rua, seguindo pela Mandacaru, sentido HU, passei por algumas pizzarias e as pessoas me observavam, curiosas. Minha surpresa fora encontrar dois olhos bem conhecidos me olhando numa delas, alguma coisa como Pizzaria Mandacaru, e eles não se desviaram de mim, atônitos. um sujeito de roupão, ora. Emerson estava ali, ele e toda a família. no memento em que eu passava, a pizza chegou. Emerson bebia cerveja e sorria – antes de me ver. continuei caminhando, senti os olhos me acompanharem – quem se importa? vi que o sujeito cutucou a mulher, apontou-me. eu só precisava caminhar mais duas quadras e estaria em casa. estaria mais uma vez seguro, salvo das convicções, teria ainda um resto de Montila, teria ainda um último baseado – não olhei para trás, apenas continuei.

Um comentário:

Lucas Barreto disse...

Que maravilha, hein? Bukowskiando pra variar...