segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Viagem ao centro da alma

Considerar seriamente a vida pode ser perigoso. 
Na maioria das vezes você acaba bêbado numa passarela alta equilibrando-se naquelas ferragens congelantes, fitando o vazio eterno da noite, sem ninguém que possa ouvir qualquer coisa, sem nenhum Deus que possa consolá-lo. Ad infinitum, só o escuro e os poucos barulhos de motores a combustão queimando distante de tudo, longe de você, a milhas de qualquer caminho de convergência para a sua salvação. Portanto, antes de qualquer reflexão mais ponderada, saiba que você acabará dentro de uns três sacos de lixo pretos, esquartejado, insepulto, fedendo a carne morta em decomposição. Sua mulher com uma faca pingando sangue numa das mãos, uma passagem para São Paulo sobre a mesa, e você dentro daqueles sacos, rodeado de moscas. Eu estava numa fase reflexiva, aquela cujo papel central e imprescindível é pensar a morte, a insignificância da vida, as parcas virtudes do homem?, a solidão esmagadora que atinge a todos, e em todos os momentos. Os fins nos próprios fins, os meios, nos centros, as lâmpadas quebradas, as casas com pavimentos superiores, tudo adquirindo a mais sombria das aparências; gatos pretos surreais à lá Dali e  a ausência do tempo e o sol congelado e todas aquelas pessoas matando as horas em todos os bares do mundo. Não pondere a vida. Trate-a como deve ser tratada, como se tudo não passasse de um grande e irremediável sonho. Trate-a como aquilo que existe para acabar; a borboleta é quem sonhou ser o sábio chinês.
Eu havia perdido algum tipo de sensibilidade que todas as pessoas um dia perdem e simplesmente parei. Sabe aquelas placas vermelhas? Pare. Foi brusco, mas a cidade continuava ali, em movimento, e todas as mentes ainda pensavam nos problemas que criamos. Eu começei a caminhar, a cabeça vazia, os olhos um pouco murchos, desanimado, vivo, sem destino; começei a divagar literalmente, mais ao acaso do que uma latinha de coca-cola esperando ser reciclada numa floresta de beira de estrada. Descobri a facilidade de viver quando se tem crédito no mercado; acabei criando concepções que se não são viáveis  ao mundo, ao menos à mim, tornaram-se. Coisas como contas em bares, três bares, com três donos diferentes, que em diferentes horários me são úteis, que poucas vezes me encontram verdadeiramente sóbrio; a mente sempre trabalha mais que o corpo e a passarela nos convida nas noites frias e melancólicas de qualquer estação.
Eu divagava por não ter onde ir, ou o que fazer, matar o tédio, empurrar a vida, esperar o grande momento, o big-bang avassalador, todas as respostas num único e magico momento. Eu divagava dentro do meu panteísta mundo, mas as pernas é só um meio que criamos para se chegar a um fim. Quase sempre esse fim era um bar, com poucas pessoas, crédito, ou amigos. A desolação. Eu divaguei, fui atrás do álcool que salvaria o marítimo que se afundava no sentimento oceânico existencial. Era um bar pouco convidativo; os cristãos sentiam certa animosidade quando passavam e olhavam aquele bando de pessoas vivendo; eles rezavam por nós. Rezavam para que pintassem aquelas paredes verdes, descascadas, rezavam para que déssemos um jeito naqueles fliperamas antiquados, naquele pentagrama no teto; talvez se não fosse Paulo de Tarso, todos estivessesm ali conosco, bebendo... Mas eles rezavam por nós, sentim pena, erámos pobres fracassados sentados naquelas cadeiras obsoletas e amareladas e enferrujadas, sorrindo e sorrindo e olhando os cristãos com suas rapaduras embaixo dos braços, sentindo a mais falsa comiseração para conosco. Era lindo e porque era lindo, não era humano e eu gostava muito daquilo tudo.
- Dimur, UMA cerveja. Eu quero uma cerveja. Nada se compara a uma cerveja gelada, num dia gelado com pessoas geladas ao redor, Dimur.
Ele abriu a cerveja, vagaroso. Alguns conhecidos apareceram, me convidaram pra fazer alguma coisa na casa de outra pessoa que estava fazendo alguma coisa, então eu disse que tomaria algumas com o capeta primeiro e depois os achariam. O capeta, neste contexto, era o prórpio Dimur, dono do bar. O sempre dócil e compreensivo capeta.
Era um sábado e os sábados é um dia especial para grande parte da humanidade. Claro que existem várias considerações a se fazer: algumas pessoas consideram o sábado, ou o final de semana, os únicos momentos verdadeiramente dignos de se viver. Ora, foi tão de repente que nos encontramos confinados  nessas rotinas malditas de trabalho e suor pra manter essa máquina de fumaça funcionando... O ócio do sábado, portanto, é o que nos mantêm vivos. Bebi toda a cerveja, depois pedi mais umas duas enquanto conversava com algumas pessoas que falavam sobre Churchill e a segunda guerra e o caralho e Marx e o comunismo e 1789 e o fodidão do Napoleão; disseram coisas sobre o príncipe regente gordo e homossexual de 200 anos atrás que governou o Brasil-colônia e de como o exército Francês chegou aos frangalhos em Portugal em 1807 e já iam começar a falar sobre nossas vidas na sociedade líquida de Bauman,  quando saí correndo dali antes de começarem a revelar seus desejos de vingança contra o PT e Dilma e a porra do cachoeira não sei das quantas e os velhinhos corruptos e sem coração que nos fode todos os dias naqueles palácios, câmaras, planaltos e tudo.
Eu caminhei apressado até o local em que as pessoas também estavam preenchendo, de certa forma, o vazio da vida. Estavam tocando violão; havia muita, MUITA bebida e maconha e tudo estava tão maravilhoso que minha mente suícida começou a ponderar o porquê de eu me sentir bem. Eram poucas as vezes que esse sentimento se manifestava, então começei a perscrutar nas vísceras mais profundas da minha consciência o que estava acontecendo. Me peguei sorrindo, cantando, sendo sociável e até mesmo gentil. O céu estava fantástico, negro, estrelado como em poucas noites. Eu precisava saber o que estava acontecendo comigo de modo a poder usar isto no dia-a-dia. Seria muito bom e construtivo para mim e para a sociedade se esse sentimento fosse constante. Nietzsche ficaria feliz se eu abandonasse um pouco desse meu sentimento de culpa e me tornasse um pouco mais ativo em meus impulsos. Não teriam que recolher os pedaços fétidos de carne morta e humana na beira da rodovia 417 numa manhã frienta de junho, talvez.
Estavam cantando uma bela canção e o refrão era este:
A arte de amar; a cachaça no bar e a cabeça cansada de pensar...
Minha euforia crescia junto a minha embriagues. Meu olhos se fechavam ao passo que a fumaça do baseado impregnava meus olhos; entre uma cochilada e outra na cadeira... Entre o abrir e fechar de olhos... Descobri a origem dos meus sentimentos. E foi lindo. Ela estava bem próxima de mim, contrapondo-se. Me olhava dormir e sorria. Ela trazia um cigarro entre os dentes e os labios eram vermelhos de batom. Despertei como uma manhã tempestuosa e escura. Oh, quão doce é o sabor do amor. Essas coisas existem e não importa quem foi queimado vivo na idade-média. Não me interessam as decapitações na revolução francesa. Não me interessa, de coração, a morte de Giovanni Bruno a um monte de tempo atrás. A única coisa satisfatória para mim, naquele momento e provavelmente em todos os outros, era aquela pessoa me olhando com seus grandes olhos negros escárninhos.
A arte de amar; a cachaça no bar e a cabeça cansada de pensar...
- E então, sonhava com alguma coisa interessante? – Perguntou-me, oferecendo um copo de cerveja que aceitei prontamente.
- NADA que não esteja acontecendo agora também. – Acendi um cigarro e olhei dentro daqueles olhos – Você acredita naqueles sonhos em que o sonhador consegue controlá-lo? Deve haver um nome pra isso...
- Pois é, eu sei. Deve ser fantástico. Apesar de eu ser um pouco cética em relação a isto. Meus sonhos são bem fantasmagóricos, sabe?, eles são meio apagados...
- Bom... eu também não acreditaria nisto se não estivesse agora vivenciando. Você faz parte deste meu sonho, talvez.
Ela não respondeu. Continuou fumando em silencio e me olhando. As pessoas se aproximavam e se sentavam ao nosso lado e falavam sobre muitas coisas... coisas que pareciam importantes e que realmente eram. Mas eu não escutava mais nada. Eu havia encontrado o verdadeiro Carma, porque ali era minha verdadeira Sangha e todos a minha volta inclusive eu eram fabulosos Bikshus indianos. Aquelas pessoas, estranhamente, estavam me fazendo bem. Havia uma certa harmonia no ar de modo que uma mudança cosmológica ganhava forma em minha consciência.
A noite sucumbiu às nossas disposições e o céu e o crepúsculo e tudo que é inerente à natureza do dia, começou a ganhar forma. Enquanto alguns se arrastavam pelo chão, outros dormiam no sofá e camas espalhadas pela casa; eu ofereci-me para acompanhá-la até sua casa e disse que poderíamos fumar o derradeiro baseado e olharmos o desvanecer do dia e ela concordou com um sorriso que deveria ser um direito natural de toda a humanidade contemplá-lo. Descobri de modo rápido, porém preciso, que ela era um pouco mais insana do que eu e que se chamava Luana; um nome que despertou em mim penssamentos que evitei a noite toda. Pensamentos antigos. Pensei em Luana como minha Marilou, LuAnne, personagem de Kerouac. Eu tinha certeza que era relamente ela. Eu estava louco, bêbado, insône e apaixonado.
- Seu nome me lembra fantasias de tempos passados... Você me lembra o passado ou talvez algo atemporal. Pessoas como você são pessoas atemporais. Elas simplesmente existem.
Acho que ela não entendeu. Todos estávamos embriagados e por isso meu ressentimento permanceu quietinho no inconsciente. Ela me olhou, sorriu, mas não um sorriso de quem concordava e compartilhava dos mesmos sentimentos. Foi mais um sorriso de admiração.
Ela disse:
- Eu sou Lésbica. Gosto de mulheres, me desculpe. Eu gostei muito de você, será ótimo a sua amizade e espero podermos nos ver mais vezes. Eu moro aqui.
Me abraçou porque sabia que eu precisava. Sabia que eu estava sofrendo por um sentimento que transformara uma pessoa. Ela se sentiu mal pelo destino ser tão cruel e se apresentar nestas circunstâncias constrangedoras. Eu disse que não havia nada de mais e que sim, nos veríamos mais vezes. Seriamos AMIGOS.
Ela entrou.
A grama nos canteiros estavam úmidas. Os cachorros não latiam naquela hora da manhã. Seria um dia escuro e sem sol. Barulhos distantes de veículos modernos. Um monte de coisas na cabeça. A passarela, o corpo estirado no chão. Deus. Sócrates bebendo aquele invejável cálice de cicuta. Uma noite com os amigo e um fortuito amor, é o que basta. Ninguém precisa de uma passarela amarela e alta. É perigoso considerar a vida, trate-a como um grande teatro shakesperiano com entrada franca. 

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