Considerar seriamente a vida pode ser
perigoso.
Na maioria das vezes você acaba bêbado numa passarela alta equilibrando-se naquelas ferragens congelantes, fitando o vazio eterno da noite,
sem ninguém que possa ouvir qualquer coisa, sem nenhum Deus que possa
consolá-lo. Ad infinitum, só o escuro e os poucos barulhos de motores a combustão
queimando distante de tudo, longe de você, a milhas de qualquer caminho de
convergência para a sua salvação. Portanto, antes de qualquer reflexão mais
ponderada, saiba que você acabará dentro de uns três sacos de lixo pretos, esquartejado,
insepulto, fedendo a carne morta em decomposição. Sua mulher com uma faca
pingando sangue numa das mãos, uma passagem para São Paulo sobre a mesa, e você
dentro daqueles sacos, rodeado de moscas. Eu estava numa fase reflexiva, aquela
cujo papel central e imprescindível é pensar a morte, a insignificância da
vida, as parcas virtudes do homem?, a solidão esmagadora que atinge a todos, e
em todos os momentos. Os fins nos próprios fins, os meios, nos centros, as
lâmpadas quebradas, as casas com pavimentos superiores, tudo adquirindo a mais
sombria das aparências; gatos pretos surreais à lá Dali e a ausência do tempo e o sol congelado e todas
aquelas pessoas matando as horas em todos os bares do mundo. Não pondere a
vida. Trate-a como deve ser tratada, como se tudo não passasse de um grande e
irremediável sonho. Trate-a como aquilo que existe para acabar; a borboleta é
quem sonhou ser o sábio chinês.
Eu havia perdido algum tipo de
sensibilidade que todas as pessoas um dia perdem e simplesmente parei. Sabe
aquelas placas vermelhas? Pare. Foi brusco, mas a cidade continuava ali, em
movimento, e todas as mentes ainda pensavam nos problemas que criamos. Eu
começei a caminhar, a cabeça vazia, os olhos um pouco murchos, desanimado,
vivo, sem destino; começei a divagar literalmente, mais ao acaso do que uma
latinha de coca-cola esperando ser reciclada numa floresta de beira de estrada.
Descobri a facilidade de viver quando se tem crédito no mercado; acabei criando
concepções que se não são viáveis ao
mundo, ao menos à mim, tornaram-se. Coisas como contas em bares, três bares,
com três donos diferentes, que em diferentes horários me são úteis, que poucas
vezes me encontram verdadeiramente sóbrio; a mente sempre trabalha mais que o
corpo e a passarela nos convida nas noites frias e melancólicas de qualquer estação.
Eu divagava por não ter onde ir, ou o que
fazer, matar o tédio, empurrar a vida, esperar o grande momento, o big-bang
avassalador, todas as respostas num único e magico momento. Eu divagava dentro
do meu panteísta mundo, mas as pernas é só um meio que criamos para se chegar a
um fim. Quase sempre esse fim era um bar, com poucas pessoas, crédito, ou
amigos. A desolação. Eu divaguei, fui atrás do álcool que salvaria o marítimo
que se afundava no sentimento oceânico existencial. Era um bar pouco convidativo;
os cristãos sentiam certa animosidade quando passavam e olhavam aquele bando de
pessoas vivendo; eles rezavam por nós. Rezavam para que pintassem aquelas
paredes verdes, descascadas, rezavam para que déssemos um jeito naqueles
fliperamas antiquados, naquele pentagrama no teto; talvez se não fosse Paulo de
Tarso, todos estivessesm ali conosco, bebendo... Mas eles rezavam por nós,
sentim pena, erámos pobres fracassados sentados naquelas cadeiras obsoletas e
amareladas e enferrujadas, sorrindo e sorrindo e olhando os cristãos com suas
rapaduras embaixo dos braços, sentindo a mais falsa comiseração para conosco.
Era lindo e porque era lindo, não era humano e eu gostava muito daquilo tudo.
- Dimur, UMA cerveja. Eu quero uma
cerveja. Nada se compara a uma cerveja gelada, num dia gelado com pessoas
geladas ao redor, Dimur.
Ele abriu a cerveja, vagaroso. Alguns
conhecidos apareceram, me convidaram pra fazer alguma coisa na casa de outra
pessoa que estava fazendo alguma coisa, então eu disse que tomaria algumas com
o capeta primeiro e depois os achariam. O capeta, neste contexto, era o prórpio
Dimur, dono do bar. O sempre dócil e compreensivo capeta.
Era um sábado e os sábados é um dia
especial para grande parte da humanidade. Claro que existem várias considerações
a se fazer: algumas pessoas consideram o sábado, ou o final de semana, os
únicos momentos verdadeiramente dignos de se viver. Ora, foi tão de repente que
nos encontramos confinados nessas
rotinas malditas de trabalho e suor pra manter essa máquina de fumaça
funcionando... O ócio do sábado, portanto, é o que nos mantêm vivos. Bebi toda
a cerveja, depois pedi mais umas duas enquanto conversava com algumas pessoas
que falavam sobre Churchill e a segunda guerra e o caralho e Marx e o comunismo
e 1789 e o fodidão do Napoleão; disseram coisas sobre o príncipe regente gordo
e homossexual de 200 anos atrás que governou o Brasil-colônia e de como o
exército Francês chegou aos frangalhos em Portugal em 1807 e já iam começar a
falar sobre nossas vidas na sociedade líquida de Bauman, quando saí correndo dali antes de começarem a
revelar seus desejos de vingança contra o PT e Dilma e a porra do cachoeira não
sei das quantas e os velhinhos corruptos e sem coração que nos fode todos os
dias naqueles palácios, câmaras, planaltos e tudo.
Eu caminhei apressado até o local em que
as pessoas também estavam preenchendo, de certa forma, o vazio da vida. Estavam
tocando violão; havia muita, MUITA bebida e maconha e tudo estava tão
maravilhoso que minha mente suícida começou a ponderar o porquê de eu me sentir
bem. Eram poucas as vezes que esse sentimento se manifestava, então começei a
perscrutar nas vísceras mais profundas da minha consciência o que estava
acontecendo. Me peguei sorrindo, cantando, sendo sociável e até mesmo gentil. O
céu estava fantástico, negro, estrelado como em poucas noites. Eu precisava
saber o que estava acontecendo comigo de modo a poder usar isto no dia-a-dia.
Seria muito bom e construtivo para mim e para a sociedade se esse sentimento
fosse constante. Nietzsche ficaria feliz se eu abandonasse um pouco desse meu
sentimento de culpa e me tornasse um pouco mais ativo em meus impulsos. Não
teriam que recolher os pedaços fétidos de carne morta e humana na beira da
rodovia 417 numa manhã frienta de junho, talvez.
Estavam cantando uma bela canção e o
refrão era este:
A arte de amar; a cachaça no bar e a cabeça cansada de pensar...
Minha euforia crescia junto a minha
embriagues. Meu olhos se fechavam ao passo que a fumaça do baseado impregnava
meus olhos; entre uma cochilada e outra na cadeira... Entre o abrir e fechar de
olhos... Descobri a origem dos meus sentimentos. E foi lindo. Ela estava bem
próxima de mim, contrapondo-se. Me olhava dormir e sorria. Ela trazia um cigarro
entre os dentes e os labios eram vermelhos de batom. Despertei como uma manhã
tempestuosa e escura. Oh, quão doce é o sabor do amor. Essas coisas existem e
não importa quem foi queimado vivo na idade-média. Não me interessam as
decapitações na revolução francesa. Não me interessa, de coração, a morte de
Giovanni Bruno a um monte de tempo atrás. A única coisa satisfatória para mim,
naquele momento e provavelmente em todos os outros, era aquela pessoa me olhando
com seus grandes olhos negros escárninhos.
A arte de amar; a cachaça no bar e a cabeça cansada de pensar...
- E então, sonhava com alguma coisa
interessante? – Perguntou-me, oferecendo um copo de cerveja que aceitei
prontamente.
- NADA que não esteja acontecendo agora
também. – Acendi um cigarro e olhei dentro daqueles olhos – Você acredita
naqueles sonhos em que o sonhador consegue controlá-lo? Deve haver um nome pra
isso...
- Pois é, eu sei. Deve ser fantástico.
Apesar de eu ser um pouco cética em relação a isto. Meus sonhos são bem
fantasmagóricos, sabe?, eles são meio apagados...
- Bom... eu também não acreditaria nisto
se não estivesse agora vivenciando. Você faz parte deste meu sonho, talvez.
Ela não respondeu. Continuou fumando em
silencio e me olhando. As pessoas se aproximavam e se sentavam ao nosso lado e
falavam sobre muitas coisas... coisas que pareciam importantes e que realmente
eram. Mas eu não escutava mais nada. Eu havia encontrado o verdadeiro Carma,
porque ali era minha verdadeira Sangha e todos a minha volta inclusive eu eram
fabulosos Bikshus indianos. Aquelas pessoas, estranhamente, estavam me fazendo
bem. Havia uma certa harmonia no ar de modo que uma mudança cosmológica ganhava
forma em minha consciência.
A noite sucumbiu às nossas disposições e o
céu e o crepúsculo e tudo que é inerente à natureza do dia, começou a ganhar
forma. Enquanto alguns se arrastavam pelo chão, outros dormiam no sofá e camas
espalhadas pela casa; eu ofereci-me para acompanhá-la até sua casa e disse que
poderíamos fumar o derradeiro baseado e olharmos o desvanecer do dia e ela
concordou com um sorriso que deveria ser um direito natural de toda a
humanidade contemplá-lo. Descobri de modo rápido, porém preciso, que ela era um
pouco mais insana do que eu e que se chamava Luana; um nome que despertou em
mim penssamentos que evitei a noite toda. Pensamentos antigos. Pensei em Luana
como minha Marilou, LuAnne, personagem de Kerouac. Eu tinha certeza que era
relamente ela. Eu estava louco, bêbado, insône e apaixonado.
- Seu nome me lembra fantasias de tempos
passados... Você me lembra o passado ou talvez algo atemporal. Pessoas como
você são pessoas atemporais. Elas simplesmente existem.
Acho que ela não entendeu. Todos estávamos
embriagados e por isso meu ressentimento permanceu quietinho no inconsciente.
Ela me olhou, sorriu, mas não um sorriso de quem concordava e compartilhava dos
mesmos sentimentos. Foi mais um sorriso de admiração.
Ela disse:
- Eu sou Lésbica. Gosto de mulheres, me
desculpe. Eu gostei muito de você, será ótimo a sua amizade e espero podermos
nos ver mais vezes. Eu moro aqui.
Me abraçou porque sabia que eu precisava.
Sabia que eu estava sofrendo por um sentimento que transformara uma pessoa. Ela
se sentiu mal pelo destino ser tão cruel e se apresentar nestas circunstâncias
constrangedoras. Eu disse que não havia nada de mais e que sim, nos veríamos
mais vezes. Seriamos AMIGOS.
Ela entrou.
A grama nos canteiros estavam úmidas. Os
cachorros não latiam naquela hora da manhã. Seria um dia escuro e sem sol.
Barulhos distantes de veículos modernos. Um monte de coisas na cabeça. A passarela,
o corpo estirado no chão. Deus. Sócrates bebendo aquele invejável cálice de
cicuta. Uma noite com os amigo e um fortuito amor, é o que basta. Ninguém
precisa de uma passarela amarela e alta. É perigoso considerar a vida, trate-a
como um grande teatro shakesperiano com entrada franca.
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