terça-feira, 31 de maio de 2011

Boa noite, Fátima!

Estavam todos sentados à mesa.
A cabeça do porco.
A avó.
A mãe e as três irmãs.
Havia um pudim reluzente para a sobremesa.
O pai ainda não havia chegado do trabalho, provavelmente estava morto ou sentado em algum bar com suas roupas sujas e botinas surradas.
Eram 20h15.
A TV e a luz da sala estavam ligadas. Eu estava segurando o prato com a mão esquerda e com a direita um garfo. Algumas (várias) pessoas comem assistindo televisão. É como se hipnotizassem o telespectador coagindo-o a ficar sentado olhando performances ridículas e  encenações que até o pior saltimbanco do mundo sentiria-se nauseabundo. 
A TV, a luz e eu.
O olho esquerdo daquilo que um dia já foi um porco estava dentro da boca da minha avó. Ela tentava falar com o olho do porco lá dentro.
Minha avó estava fazendo quatro coisas ao mesmo tempo: gracejando, lutando para que a dentadura não caísse, gesticulando e bebendo Coca Light. As pessoas idosas fazem variadas coisas ao mesmo tempo para não parecerem que estão prestes a morrer. Ou fazem por acharem que vão morrer a qualquer momento. 
A Fátima me contava algo sobre um terremoto.
Já o Willian me disse coisas sobre a Inglaterra.
Eu mastigava um pedaço de cérebro de porco. A mão esquerda estava no ar segurando o garfo e a direita ainda segurando o prato.
Todas as pessoas do mundo estavam comendo naquela hora.
Menos Fátima e Willian.
Eles me contaram gentilmente que as pessoas que ficaram como reféns em São Paulo a tarde toda, foram baleadas agora já escurecendo.
A policia cravou uma bala na testa do seqüestrador.
O gerente morreu.
Nem sinal de náuseas.
Uma cliente sem nome está ferida na perna.
Nem sinal de náuseas.
Minha mãe não parava de rir. Minha avó era boa em gracejos.
E as pessoas lá fora eram boas em morrer.
De dentro da TV me avisaram que em três minutos eles estariam de volta com as noticias. 
Até logo, Fátima!
Entramos nos comerciais.
Até logo, Willian!
Agora todas aquelas pessoas mortas perderam seus significados pois entramos nos reclames do plinplin. 
Alguns empresários sorridentes e de terno me venderam um liquidificador, um CD do Roberto Carlos, um jogo de cozinha novo, um carro semi-usado, uma viagem à Paris e uma alma zero-vidas. Em três minutos.
O jornal voltou.
Fátima, aparentemente entristecida, me disse que o clima no Paquistão não vai nada bem e que mais um carro-bomba explodiu ontem à tardinha no Afeganistão.
Até o próximo comercial eles todos, mortos e feridos, ainda terão um significado.
Você vai à padaria e só isto basta para não ser um insignificante. Eles te chamam de cliente. Eles te amam, você é o cliente deles. Até que você morre. 
No seu trabalho te chamam de funcionário.
Para você se tornar um funcionário você precisa, sobretudo, ser um trabalhador. Sendo um trabalhador, você precisa aceitar algumas condições para ser um funcionário. Como: acordar cedo, muito cedo; pegar ônibus lotado; sorrir e ser paciente para com os outros funcionários. Aprender e desenvolver-se dentro da empresa; não se importar com o lucro que você proporciona em troca de uma remuneração degradante; respeitar acima de tudo o patrão que lhe concede o pão de cada dia e, indubitavelmente, não levar seu 3oitão carregado para a empresa.
Um dia você vai usá-lo.
O governo te denomina contribuinte.
Você paga seus impostos então você é um contribuinte. Até que você morra. 
A mulher que te deu leite.
A mulher que fez tua comida.
A mulher que lavou tua roupa.
A mulher que arrumou teu quarto.
A chamam de: Mãe.
O homem que pagou todos os gastos seus e da sua mãe o chamam de: Pai.
E todas aquelas crianças que cresceram com você são seus irmãos.
Engloba tudo isto e você tem uma família.
Willian, aparentemente tristonho, me disse que houve um deslizamento no Rio de Janeiro nesta tarde e morreram 40 pessoas.
Uma família inteira morreu soterrada.
O cão saiu vivo.
Agora todas aquelas pessoas mortas perderam seus significados.
Minha mãe me disse: “Já ouviu esta, filho? Vovó já fumou maconha!” Minha avó desatou num riso medieval.  “Teu avô nem desconfia”.
Meu avô varre a calçada três vezes ao dia.
Meu avô esquece que ainda está vivo.
Meu avô bebe café com suco de acerola.
Meu pai abre a porta. Cumprimenta minha avó. Elogia o cheiro de cabeça de porco. Guarda uma dúzia de cervejas na geladeira. Presenteia minhas irmãs com alguns doces que trouxe do boteco. Meu pai é um cara legal. 
Fátima anuncia uma matéria sobre alcoolismo entre os jovens.
Meu pai anuncia que vai se banhar.
Willian se diz preocupado com os jovens alcoólatras.
Eu terminei de jantar. Desligo a TV, deixo o prato que minha mãe vai lavar daqui a pouco, abro uma latinha e bebo-a como se eu fosse um velho alcoólatra no leito de morte bebendo sua ultima gelada.
Vou pra cama.
Tento pensar em coisas boas.
Tento dormir para ver se não acordo.
Tenho insônia, febre, depressão e tosse.
Masturbo-me pensando na Fátima e durmo ao lado das pessoas que ela matou hoje, na minha frente. No meu jantar. 

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